Uma está lá à vista de todos, a outra nas palavras. Livro de 2005, Os meus sentimentos é agora um espectáculo. Mónica Calle diz que Dulce Maria Cardoso o escreveu para ela, mesmo sem saber. Até sábado, na Culturgest
Sobre a mesa de trabalho, em cima do palco, Mónica Calle tem o livro aberto, carregado de horas e horas de leitura. Ao seu lado está a escritora, que veio só para ouvir e ver. Dulce Maria Cardoso lançou Os meus sentimentos em Fevereiro de 2005 e nunca mais o abriu. Nem mesmo quando a actriz lhe disse que queria transformá-lo num espectáculo, como quem lê em voz alta a sua própria biografia. É nesta obra sobre a memória que encontramos frases como esta, quase um programa: "De todos os mistérios escolho o da dor, que traz consigo o esquecimento" - assim, sem pontos finais.
Estas duas mulheres jantaram juntas depois de uma conferência da autora deO Retorno e não foi preciso muito para que Calle decidisse pegar n"Os meus sentimentos (edições Asa), que leu de rajada à segunda tentativa, numa esplanada de Campo de Ourique (em Junho tinha optado por deixá-lo de parte porque, diz, "há momentos certos para os encontros, e aquele não era o momento certo"). "Sabia que ia encontrar naquela escrita o que queria." E encontrou.
Os meus sentimentos, segundo romance de Dulce Maria Cardoso, começa quando Violeta, personagem que "conhece o amor de ouvir falar", que tem uma mãe conservadora e moralista e uma filha que a despreza, se despista na estrada. Dentro do carro acidentado, numa posição incómoda que lhe deixa o corpo sem peso (a ela, que está longe de ser uma mulher magra), Violeta fixa-se numa gota de água sobre o vidro estilhaçado. É a partir daí que se constrói uma meticulosa teia de histórias, contada na primeira pessoa por esta vendedora de cosméticos que está habituada a fazer sexo com camionistas que não conhece em casas de banho públicas à beira das estradas e que gosta pouco de si própria. Tudo, lembrou a crítica há oito anos quando a obra chegou às livrarias, com uma "dose aterradora de lirismo e crueza". A dose certa.
"A Mónica lê o texto como eu o oiço na minha cabeça", diz ao PÚBLICO a escritora. "E esse encontro é incrível. É que ela podia ser igualmente talentosa e não se dar esta coincidência de ela ler como eu leria se soubesse ler em voz alta." Calle vai mais longe na afinidade com a história que Dulce Maria Cardoso criou para esta personagem, através da qual se fala também do Portugal do pós-25 de Abril, desse período de transição entre a velha e a nova ordem: "A Violeta sou eu. Em toda a sua fragilidade, em todo o seu desamparo... Sou eu. [...] Quanto mais trabalho nele mais tenho a certeza de que este livro foi escrito para mim. A Dulce não sabia, mas para mim é biográfico, é o sítio onde estou na minha vida, de uma forma bastante evidente."
O intervalo é uma festa
Os meus sentimentos - o espectáculo que estreia hoje às 19h30 e fica até sábado na Culturgest, em Lisboa, vai buscar o nome ao livro - tem a duração de cinco horas e uma estrutura invulgar, que a música ajuda a compor, em cena e fora dela, e em que o desenho de luz de José Álvaro Correia tem um papel determinante.
Os quatro intervalos fazem também parte desta peça. Calle, que dirá sozinha o texto, explica: "Precisávamos de momentos de encontro, de partilha, de festa. Os intervalos são esses momentos. Espaços em que as pessoas que aqui vêm podem conhecer-se, conversar." A escritora ficou muito contente com esta ideia de prolongamento que permite sair da solidão que o livro traz. "O intervalo surge sempre como uma consequência do texto. Quero que, à medida que o espectáculo vai acontecendo, a relação entre as pessoas mude", acrescenta a actriz. "Os intervalos permitem-me ir à brutalidade e à dor que o texto implica." São como espaços para respirar. PJ Harvey, Elis Regina, Tim Buckley, Nina Simone e Astor Piazzolla são alguns dos nomes da banda sonora.
Os meus sentimentos é para Dulce Maria Cardoso, a quem Violeta deixou saudades, "um livro especial", cuja transposição para palco - Calle diz que faz o livro e não uma adaptação - fica a dever-se à capacidade de "entrega" da actriz. "A maneira como a Mónica pegou no livro deixa-me entre a honra e o privilégio, o que dá uma coisa muito parecida com felicidade", acrescenta a escritora. "Quando escrevi este livro não estava à espera disto, de ter alguém a dizer "A Violeta sou eu"."
Para a actriz, esta obra mexe em três tabus essenciais: o da morte, o da maternidade e o da sexualidade feminina. Garante Dulce Maria Cardoso que o grande tema que a atravessa é o da memória, tal como Campo de Sangue, o primeiro romance, mergulhava na solidão e O Retorno, o último, na perda.
"A memória é morte porque só temos memória do que já passou, do que morreu. Mas a memória é também imaginação porque nunca recordamos exactamente como aconteceu", explica a autora. "Temos tendência a fugir da morte, talvez porque a única certeza que temos na vida é de que isto não vai acabar bem."
Mas fugimos também das questões difíceis que a maternidade envolve, defendem as duas mulheres. "É o maior tabu da sociedade", segundo Calle. "Ser mãe é muito mais duro, mais difícil e doloroso do que aquilo que nos dizem." O livro de Dulce Maria Cardoso, lembra, tem muitas frases que vão ficar com ela, tão verdadeiras como esta: "Ninguém nos consegue trair como um filho."
Hoje, garante, não tem medo de assumir estas "verdades desconfortáveis" nem de seguir a sua intuição: "Hoje só tenho medo de perder as pessoas que amo." A escritora, que diz encontrar-se com Calle "no indizível, no que não é nomeável", também nunca teve medo de assumir as suas posições: "Há ainda muito preconceito em relação à maternidade e à sexualidade da mulher. Quando o livro saiu, as pessoas vinham ter comigo a dizer que aquilo da Violeta com os camionistas não era nada feminino. Como se as mulheres para fazerem sexo precisassem de pôr um anel de noivado."
Na maternidade, interessa-lhe abordar a questão da "obrigatoriedade do amor": "Às vezes esquecemo-nos de que os filhos são uns perfeitos desconhecidos. Ter um filho é assumir um compromisso para a vida com alguém que não conhecemos. E às vezes não resulta. Fala-se de um amor incondicional, que acontece na maioria das vezes, mas nem sempre. Às vezes a coisa falha, a biologia falha, e é por isso que há pais que não amam os filhos e filhos que não amam os pais." Foi a pensar nesta relação insubstituível, para o bem e para o mal, que a escritora se apercebeu de que não há em língua alguma uma palavra para quem perde um filho. "Há órfãos, viúvos... Mas não há nada que possamos chamar a um pai que perde um filho, a uma mãe. Não se pode reduzir a palavras."
"Ninguém corrige o passado", escreve Dulce Maria Cardoso. "I wish I could share/ All the love that"s in my heart/ Remove all the bars that keep us apart", diz Mónica Calle, na voz de Nina Simone, que traz sempre consigo.
Retirado do Público