Jean-Marc Burfin Professor na Academia Superior de Orquestra e maestro titular da Orquestra Académica Metropolitana, veio a Portugal há 20 anos e acabou por ficar.
São 17h15 em ponto. No anfiteatro-auditório do ISCTE as cadeiras vão sendo preenchidas no lado da plateia. No palco, ao fundo, estão dispostas em semicírculo dezenas de cadeiras, instrumentos, pautas de música. Os músicos que compõem a Orquestra Académica Metropolitana de Lisboa entram de forma ordeira e calma. Por fim, e acompanhado pelo violinista, Jean-Marc Burfin ocupa o seu lugar. O de maestro.
A saudação ao público é rápida e, num ápice, o som interrompe o silêncio na sala. Nesse breve momento, o maestro parece ter também orquestrado a completa ausência de ruídos do lado que não lhe compete orientar. A sala ficou parada dividindo atenções entre o violinista e os gestos duros e ritmados do homem de cabelo grisalho e fato escuro que coordena cada nota musical. A expressão facial pouco diz da pessoa que fala à orquestra. Como consegue um maestro falar a tanta gente em simultâneo? O segredo é o domínio da música. Um maestro deve estar sempre informado, saber o que quer, conhecer a partitura e saber na perfeição como pedir e obter o que quer. Aquilo que para o público é o espectáculo, para a orquestra é o produto final de um grande trabalho de bastidores. "Se eu falhar à frente do público, este talvez nem perceba, mas se eu falhar com o meu verdadeiro público, que é a orquestra, aí é pior", explica ao PÚBLICO o maestro titular da Orquestra Académica Metropolitana, Jean-Marc Burfin, para quem a "autoridade mais eficaz é a autoridade natural".
Este maestro francês que vive em Portugal há 20 anos já não fica nervoso antes de subir ao palco, a não ser quando os ensaios não correm bem (e isso já é raro acontecer). Entre aqueles que mais o influenciaram está o maestro russo Ievgueni Svetlanov. "Vi-o com três orquestras e obras diferentes e fiquei sempre impressionadíssimo. Há qualquer coisa que não tem a ver com a mecânica da direcção, há qualquer coisa que ultrapassa a questão técnica do maestro. É uma emoção muito forte", recorda o músico, que também foi aluno de Leonard Bernstein, a quem reconhece igualmente essas características transcendentes.
Goddard Lieberson, o compositor, disse um dia: "Mostra-me uma orquestra que goste do seu maestro e eu mostro-te um maestro preguiçoso." Mas Burfin não concorda. "Não é tudo branco, nem tudo preto, tem muito a ver com o percurso da orquestra, que é uma entidade com muitas pessoas, mas com um corpo único", defende. Na sua opinião, o maestro deve passar uma imagem de seriedade, não pode ser demasiado duro, mas também não deve ser brando. A exigência é uma forma de ser respeitado entre os músicos que podem ficar frustrados perante um maestro mais permissivo e descontraído. "Uma orquestra profissional não gosta de um maestro que não faz um trabalho sério", afirma.
"O sangue das obras"
A primeira coisa que Jean-Marc Burfin pede aos seus alunos de Direcção de Orquestra é uma demonstração de parte de uma obra onde "o próprio [aluno] vai criando a sua orquestra imaginária e mostra com gestos como é que acha que deve funcionar". O maestro-professor não segue um método uniforme para com todos alunos, tenta adaptar-se às capacidades e dificuldades de cada um. "Não há dois alunos iguais, é preciso respeitar a personalidade de cada um, no fundo o professor tem que ser diferente também", explica. Numa aprendizagem difícil de ministrar, em que o instrumento é a orquestra, "o reportório escolhido é acessível, do ponto de vista da estrutura e da forma, e concentrado em obras do período clássico, início do romantismo, de Haydn até Schubert". Há códigos comuns a todos os maestros, "um compasso a três é um compasso a três e um compasso a dois é um compasso a dois", explica. "Devo ter cuidado e actuar em conformidade com as orientações, pois os alunos têm uma disposição natural para imitar a minha regência e tem de haver coerência entre aquilo que peço e aquilo que eu faço", acrescenta. Tenta manter a simplicidade do gesto e impor a ideia de que à frente da orquestra tem de estar o melhor músico para "transmitir o sangue das obras".
Uma vez por semana, Constança Simas tem aulas de Direcção de Orquestra com este músico francês. "É um grande maestro e é humilde. Alguns maestros não gostam de ensinar, estão ocupados com a sua grandeza pessoal, mas ele não", diz a aluna, que quando fala do professor o faz com orgulho. "É muito sincero, às vezes até dói, mas quando são coisas boas, dá até vontade de dançar."
A Direcção de Orquestra aprende-se em público e por isso há uma pressão que não existe noutras aprendizagens, mais solitárias. Jean-Marc Burfin considera a lucidez, a humildade e a honestidade intelectual características importantes no aprendiz que tem de ter a perfeita noção de que está "perante obras e criadores que são muito superiores a ele". Brahms, Tchaikovski, Beethoven, Mahler, Ravel e Debussy são alguns dos nomes que destaca entre as suas preferências, admitindo-se mais sensível a determinadas estéticas ou períodos da música, como o fim do classicismo ou o início do romantismo. "Há sempre obras que gostaríamos de tocar, de apalpar e saborear melhor, é um poço sem fundo", observa.
Nos seus antigos alunos, apesar de não ser visível, sente alguns dos seus ensinamentos. "A Joana Carneiro dirige de uma forma completamente diferente da minha; significa que encontrou o seu próprio caminho, mas sei que se faz uma coisa completamente diferente daquilo que na altura fazia enquanto aluna, o faz sempre no sentido de corresponder aos critérios que lhe inculquei."
Já teve alunos a quem reconheceu falta de talento, mas também já foi surpreendido por alunos de quem não tinha grandes expectativas. Muitas vezes é uma questão de maturidade e de muita vontade. O que nota actualmente é que muitos dos alunos têm "dificuldades para aguentar, sob o ponto de vista económico, as exigências de um curso" e isso reflecte-se na forma como encaram a arte musical. "Sinto que há 20 anos havia mais ingenuidade no estudo da música, havia uma certa despreocupação, não havia tanta angústia, nem tanto calculismo na organização dos estudos." Sente que entre os alunos a ideia de que a música é uma segunda opção, paralela a outro rumo profissional que à partida assegura um futuro mais estável, é hoje mais comum.
O teste das notas erradas
Ao fim de tantos anos a viver em Portugal Jean-Marc Burfin não se sente português nem francês. O facto de ter família em França e na Polónia, e de ter estudado na Áustria e na Rússia, fá-lo sentir-se "um cidadão do mundo". Jean-Marc nasceu perto de Paris, em 1962, mas percorreu vários países da Europa por causa da profissão dos pais, que não tinham qualquer ligação à música. Foi na escola primária, onde havia muitas actividades, entre elas o coro, que se apaixonou por esta arte. Graças a um professor que reparou no seu talento e falou com os seus pais, aos seis anos iniciou o seu caminho na música. Começou a estudar piano em Lyon e prosseguiu os estudos em Nancy. "Tinha uma certa facilidade de assimilação, quer ao nível do ouvido, quer ao nível da leitura da música", recorda. No entanto, nessa altura ainda não pensava fazer daquela a sua profissão e só se começou a dedicar intensamente à música quando tinha 14, 15 anos. "O que é bastante tarde", lembra. "Normalmente para se chegar a um determinado patamar tem de haver um treino regular a partir dos sete, oito anos. Aos dez já é muito tarde." Apesar disso, em 1987, conquistou o 1º prémio de Direcção de Orquestra na classe de Jean-Sébastien Béreau, por unanimidade dos jurados, e depois foi convidado para dirigir a Orquestra de Paris. Foi finalista no Concurso Internacional de Jovens Directores de Orquestra de Besançon e recebeu o prémio especial da Orquestra da Rádio-Televisão de Moscovo.
No início da sua carreira foi posto à prova por alguns dos músicos mais velhos. "Os músicos mais velhos e experientes, que já têm 20, 30 anos de orquestra, acham que sabem tudo e, às vezes, nos ensaios alguns tocavam notas erradas para me testar, isso faz parte", recorda.
Desde essa época, o maestro já dirigiu inúmeras orquestras em França e no estrangeiro, como a Potsdam Phillarmonie, Württembergische Phillarmonie ou a Sinfónica de Oviedo. Mas quando terminou a sua formação não lhe foi fácil encontrar trabalho. "É um mundo muito fechado. Quando se sabe que determinada orquestra está a precisar de um maestro, normalmente já está alguém previsto", afirma.
Aos 30 anos soube de um projecto em terras lusas e rumou a Portugal, apesar de este não ser "um centro musical muito forte", perto das grandes referências como Paris, Londres ou Viena. Mas aqui tem "uma qualidade de vida" dificilmente alcançável noutros países. "O mar, o sol, a comida, o tempo, a serra de Sintra...", diz. Foi também aqui que conheceu a polaca Bogumila Burfin, sua mulher há 20 anos. No início trabalhavam em orquestras separadas, mas a música uniu-os e, "por culpa dele", acabaram por ficar. Têm um filho, que já toca piano.
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